Uma questão de verdade
Notas de pesquisa -- Resenha de um livro que mudou o rumo da minha pesquisa sobre pluralismo
Caras/os assinantes,
Um dos estudos mais importantes para a construção da minha pesquisa atual, sobre o que estou chamando de antipluralismo no Brasil contemporâneo, foi o livro Democracy and truth: a short history, da historiadora Sophia Rosenfeld. Uma tradução sua foi publicada recentemente no Brasil e sua publicação me animou a resenhá-lo para a revista Quatro cinco um. Você pode acessar a resenha clicando aqui, e, se gostar, pode ler na sequência uma versão expandida dela.
Um abraço,
Renata
A importância no debate público de termos dos quais pouco se falava há uma década, como pós-verdade e fake news, faz a historiadora e professora na Universidade da Pennsylvania Sophia Rosenfeld perceber que a verdade se tornou um problema de primeira ordem no mundo contemporâneo. Nada é evidente nessa história. Para compreender como as desventuras da verdade se tornaram uma questão candente no presente, Rosenfeld volta ao Iluminismo em seu Democracia e verdade: uma breve história, que ganha tradução para o português com a editora Ateliê de Humanidades.
O argumento central do livro é que, se hoje falamos muito sobre a verdade, é porque compartilhamos de uma imagem de democracia que tem nela como um elemento intrínseco. Em Democracia e verdade, Rosenfeld mostra como essa relação se plasmou no Iluminismo e tem perdurado desde então, ao menos até os nossos dias, quando muitos se perguntam como saber o que é verdade, hoje.
Rosenfeld está particularmente bem equipada para nos ajudar a refletir sobre o problema. Uma historiadora das ideias especializada na era das revoluções, ela publica Democracia e verdade em 2018, passados os primeiros anos da administração Donald J. Trump e, principalmente, depois da publicação de seus dois primeiros livros, Revolution in language e Common sense, ainda sem tradução para o português. Em Revolution in language, Rosenfeld apresenta uma historiografia da linguagem de sinais, um estudo sobre a politização da linguagem na era das revoluções. Já em Common sense estuda desde uma perspectiva história essa instância de conhecimentos práticos que filósofos chamaram de senso comum e que se tornou importante politicamente por possibilitar o apelo ao povo e a disputa pela unidade que ele representa.
Democracia e verdade aparece, assim, como um ponto de confluência dos estudos anteriores da autora. Desafios presentes a teriam estimulado a reunir aquilo que, no cômputo dos seus escritos, permanecia como análises estanques de dimensões distintas e igualmente constituintes da democracia: o intelectualismo e o populismo.
Rosenfeld as reúne em um recuo no tempo para compreender o que percebe como novidade do mundo contemporâneo. O livro mostra que democracia e verdade se entrelaçam de um e outro lado do Atlântico Norte, com repercussões em todo o mundo, sobretudo graçasa pensadores como Thomas Jefferson, Thomas Paine, Denis Diderot, Immanuel Kant, Edmund Burke, entre outros. Suas ideias serão uma espécie de costura da soberania popular a discursos sobre o como acessar o real.
Sucintamente, o intelectualismo, ou o discurso dos especialistas, tem como principais instâncias de produção as universidades, os centros de pesquisa e os meios de comunicação, ao passo que o populismo apela a um corpo de conhecimentos formados a partir das práticas das “pessoas comuns”. Mais do que se distinguirem em termos de valores, intelectualismo e populismo validam instâncias distintas e, em algum grau, concorrentes de produção da verdade, como as religiosas.
Parte da inquietação que o presente suscita está relacionada com disputas em torno do lugar dessas duas instâncias na democracia dos modernos. Rosenfeld sabe que o problema é antigo, mas se reconfigura quando ganha força a reclamação Iluminista de autoridade para o discurso que se constitui na prática da crítica de crenças e dogmas. Como o intelectual se define pela prática da crítica, e a princípio todos estão aptos a ela, a ampliação dos participantes na política jogaria a favor da verdade.
Relendo Max Weber, Rosenfeld sustenta que a reclamação de autoridade para o discurso dos intelectuais no regime democrático se torna uma questão política porque a transformação do mundo pelo capitalismo concorre para a crescente autoridade do conhecimento científico e sua instalação no aparato estatal. Então se instaura uma tensão entre democracia e burocracia, que será tanto maior quanto mais centrado no conhecimento científico o mundo se tornar.
Para abordar essa tensão, Rosenfeld retorna à distinção que Hannah Arendt propõe em “Verdade e política” (1970) entre verdade lógica e verdade factual. No pensamento arendtiano, a verdade lógica, seja a da matemática, seja a da filosofia, é imutável e atemporal, ao passo que a verdade factual é empírica e histórica, pode dizer respeito a fatos presentes ou pretéritos. Rosenfeld se ocupa, em seu livro, desse segundo tipo de verdade.
Ela propõe entendermos a verdade factual como um consenso tênue acerca do que pessoas diferentemente situadas percebem como realidade. A ela, Arendt contrapõe tanto o engodo e a mentira quanto a falsidade e a inverdade.
Por um lado, Arendt percebe uma fragilidade na verdade factual, que é ser uma construção social e sempre contingente. Por outro lado, esse é, a seu ver, o único tipo de verdade pertinente à política. Isso porque a verdade lógica expressa um absoluto, e, ao longo de sua trajetória intelectual, Arendt consistentemente reafirmou seu entendimento de que não há lugar para absolutos na política.
Para ela, a política é o espaço das opiniões, e opiniões são por definição relativas a uma perspectiva singular. É claro que essa formulação pode derivar num relativismo preguiçoso e inconsequente, por tornar qualquer comum uma impossibilidade. Contra esse risco, Arendt argumenta em A condição humana que, dessa singularidade e consequente pluralidade de perspectivas, dependem o comum e a realidade.
É uma ideia difícil de apreender a de que, para Arendt, a realidade existe na medida em que uma pluralidade de pessoas se refere a algo que lhes parece idêntico como sendo o real e, ao fazê-lo, acabam por instituí-lo socialmente. De todo modo, ela permite afirmar que, para Arendt, só há realidade porque há pluralidade de perspectivas e porque as pessoas comunicam umas às outras o que lhes parece. Ao se comunicarem, compartilham suas percepções de semelhança e diferença em na forma de opiniões.
De uma parte, se a verdade lógica não tem lugar na política para Arendt, a política, entendida como domínio das opiniões, não existe sem a verdade, a verdade factual, porque é em relação com ela que as opiniões se formam. De outra, a ciência é uma dimensão importante da vida contemporânea. Essa sua importância pode ser um problema político porque o discurso científico é estranho à maioria.
Para Rosenfeld, como para Arendt, as pessoas constroem suas percepções e entendimentos numa instância de sentidos compartilhados, o que ambas chamam de senso comum. Já especialistas habitam o que podemos chamar de um senso incomum, uma instância de sentidos não compartilhados fora do círculo de especialistas. Não espanta, portanto, que, para leigos nas matérias de que os especialistas da ocasião se ocupam, suas falas públicas soem nonsense, e especialistas parecem não reconhecer no senso comum uma instância de conhecimento com a qual interagir.
Percebendo o perigo do papel crescente de especialistas na política, Arendt argumenta, em “Compreensão e política” (1953), que entender um problema público implica partir do senso comum e ao final retornar a ele. Por essa prescrição de especialistas se entenderem com o senso comum, não é descabido afirmar que Arendt percebe um potencial absolutista no discurso dos especialistas.
Nem para Arendt, nem para Rosenfeld, no entanto, o potencial absolutista do seu discurso implica descartar o que especialistas falam ou diminuir a importância do conhecimento no mundo contemporâneo. Trata-se apenas de perceber o que podemos chamar de caráter antipopulista do conhecimento. Esse traço é, por um lado, fundamental para sua produção, mas pode ser, por outro, prejudicial à política, tomado como o domínio das opiniões e, por conseguinte, do relativo. Por isso, é importante tanto assegurar sua autoridade quanto circunscrever os espaços em que sua autoridade prevalece.
Também há riscos no populismo. Mas, então, o que Rosenfeld entende pelo termo?
O populismo é, para Rosenfeld, “uma estrutura narrativa que molda o poder político” na medida em que apela ao senso comum para emprestar autoridade à própria fala. Por força desse apelo, essa “estrutura narrativa” acaba o constituindo como instância produtora de discursos verdadeiros.
O que primeiro me interessou no estudo de Rosenfeld foi essa proposta de tratar o populismo como um fenômeno comunicacional. Nisso, ela se alinha a Nadia Urbinati e difere de Cass Mude, Jan Werner Müller e outros que o tratam como uma questão de ideologia, valores, moralidades e visões de mundo. Rosenfeld não difere deles por oposição propriamente, mas por dar um passo atrás e deslocar o antipluralismo, que caracterizaria o populismo, da substância para a dimensão das operações que realizamos na tentativa de entender o mundo e nos entendermos com ele.
Para Rosenfeld, o populismo é uma forma de comunicação que atores políticos usam sem necessariamente corromper a democracia, e não um conjunto de ideias incompatíveis com o regime democrático. Como não define o populismo primordialmente pela substância, a proposição de Rosenfeld nos ajuda a entender como podemos perceber o fenômeno à direita e à esquerda do espectro político, em meio a autodeclarados conservadores e progressistas. Também nos ajuda a pensar a importância da comunicação digital para a política, pois, se o populismo é uma “estrutura narrativa”, uma “forma de comunicação”, deve ser sensível a mudanças nos meios pelos quais nos comunicamos.
Concretamente, o estudo de Rosenfeld ilumina aspectos ainda mal compreendidos da ascensão de líderes políticos como Trump e Bolsonaro, que não só apelam ao senso comum, como também procuram encarná-lo, na disputa pela unidade social, pelo “povo”. Por um lado, a centralidade da ideia de senso comum no entendimento de populismo o associa a práticas históricas longamente constituídas. Por outro lado, não negligencia os meios e, em consequência, as oportunidades inéditas de que os atores políticos dispõem para ressignificar “o povo”, reconfigurando, no processo, as relações entre maiorias e minorias, representação política e Estado de Direito.
Rosenfeld chama a atenção para um risco à democracia implicado nesse processo. Entendido nos termos em que ela propõe, o apelo populista ao senso comum pode conferir um tipo de autoridade absoluta a um discurso anti-intelectualista, que não é crítico do intelectualismo, ciente dos seus limites, mas contestatório da autoridade das instâncias produtoras de conhecimento.
Para resumir, intelectualismo e populismo não são necessariamente absolutistas, mas seu absolutismo é incompatível com a mitologia da verdade que, segundo Rosenfeld, informa a imagem mais compartilhada da democracia no mundo contemporâneo. Uma lição que os séculos XX e XXI oferecem é que o espaço entre essas duas instâncias tende a ser uma questão política crucial quando o discurso dos especialistas impacta o cotidiano e ao mesmo tempo soluciona insuficientemente seus problemas. Nessas circunstâncias, o populismo pode adquirir teor conspiratório - por exemplo, contra o establishment ou o “globalismo” - e portar uma promessa de redenção pelo passado.
O século XXI tem mostrado que os meios digitais de comunicação, combinados com o uso indiscriminado de aparelhos celulares e as chamadas mídias tradicionais, ampliaram as possibilidades de emprestar plausibilidade à ficção e os incentivos para ficcionalizar a realidade. O problema não são só os renovados recursos para organizar a mentira, mas também as oportunidades abertas para borrar as fronteiras entre ficção e realidade.
Uma grande contribuição de Democracia e verdade ao debate público é mostrar, com rigor, clareza e sagacidade, que o modo como temos imaginado a verdade em relação com a soberania popular supõe uma estrutura narrativa muito singular e minimalista. Nessa estrutura, verdade é diferente de falsidade, a diferença entre verdade e falsidade importa e é construída a partir de perspectivas plurais.
Por isso podemos considerar que o antipluralismo que percebemos no populismo autoritário é de ordem epistêmico-moral antes de ideológico. Ele se mostra refratário à mitologia da verdade que desde o século XVIII tem estado associada ao imaginário democrático. “A pós-verdade”, elucida Rosenfeld “é, no fundo, uma luta sobre pessoas como portadoras da autoridade epistêmica e sobre seus diferentes métodos de investigação e verificação numa era intensivamente partidária”.
Excelente contribuição sua para esse debate angustiosamente urgente sobre a verdade e o poder, Renata. Digo _sua_ porque é muito mais do que uma resenha, é um estudo/encaminhamento. Você sabe que tenho dedicado a minha vida à questão da verdade, mas numa dimensão mais histórico-metafísica. As dimensões da sua resenha vão me ajudar a acrescentar dimensões. Fico devendo!