Hannah Arendt se fez presente por várias vias nos últimos dias, de modo que resolvi retomar as minhas atividades aqui pelas aparições dessa velha senhora. Vou retomá-las compartilhando um livro, uma série e um filme que são caminhos abertos a quem quiser encontrá-la.
Começo pelo livro. As Edições 70 acabam de lançar O caso Eichmann: Hannah Arendt e as controvérsias jurídicas sobre o julgamento, de Adriano Correia, renomado estudioso do pensamento arendtiano e professor de Filosofia na Universidade Federal de Goiás. Nesse estudo, Adriano retorna ao polêmico livro de Arendt Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal, aos sessenta anos da sua publicação, para discutir a ilegalidade do modo como Eichmann é levado a julgamento em Israel, a competência do Estado israelense para julgá-lo, a singularidade dos crimes que lhe são imputados e a justiça da pena que que lhe foi imposta, a pena capital.
Adriano não tem formação em Direito, mas oferece um tratamento rigorosamente correto das intrincadas questões jurídicas do caso e produz uma espécie de direito internacional dos filósofos. Como não poderia deixar de ser, socorre-se de uma ampla e variada literatura acadêmica na corajosa empreitada, que torna a reflexão de Arendt sobre o direito acessível e enriquece o debate sobre culpa, responsabilidade e direitos humanos nas Humanidades de um modo geral e, em particular, no Direito.
Assisti a série Transatlântico junto com o livro. Ela está disponível na Netflix, e vi os seus sete episódios no final de semana, ou seja, é factível maratoná-la.
Não caí de amores pela produção, nem fiquei encantada, mas tinha expectativas formadas pela leitura prévia de biografias dos envolvidos, como as de Arendt, Walter Benjamin e Albert O. Hirschman, e é de se imaginar que isso explique, em parte, frustrações que a série gerou. Como mesmo assim valeu a pena assisti-la, só posso recomendá-la.
Do que gostei? Gostei da história. A rigor, a série conta a história do Emergency Rescue Committee, protagonizada pelo jornalista Varian Fry e pela herdeira de um banqueiro de Chicago Mary Jayne Gold. Não sou abalizada para analisar a produção e vou me limitar a explicar por que gostei de vê-la. Ela mostra as ações do Comitê em Marselha para retirar intelectuais e artistas judeus da Europa para os Estados Unidos e como o grupo vive enquanto não chega o dia da partida.
Nos Estados Unidos, intelectuais e artistas judeus ajudados pelo Comitê seriam fundamentais na história de inúmeras instituições, como a New School for Social Research e o MoMA. Na série, os “refugiados ilustres” encontram aliados cruciais nas margens da sociedade francesa, como Paul e seu irmão, que deixaram a mãe em sua terra natal, uma colônia francesa, e trabalham num hotel na cidade. Juntos, eles fazem o que tem de ser feito para se manterem vivos e o Comitê continuar funcionando, sem pensar muito nas consequências. Não são inconsequentes, só agem em circunstâncias altamente desfavoráveis, em que quase tudo escapa ao seu controle, de modo que o que lhes resta é resolver os problemas um de cada vez, conforme eles vão aparecendo.
A série mostra como é doloroso e difícil para o grupo de refugiados deixar a Europa, toda a textura da vida, enquanto anseiam por visto e meios de cruzar o Atlântico. É tocante a sua preocupação com a transmissão dos seus escritos e telas, que Benjamin e Chagall levam às últimas consequências na produção, enquanto americanos e franceses tanto se empenham quanto relutam em acolhê-los. Os franceses, na ficção como na realidade, dificultam bastante as coisas e colaboram na perseguição.
As festas eram animadas, o grupo era nada conservador nos costumes, nem liberal na economia. Há, no entanto, oportunidades perdidas. A meu ver, algumas delas são dignas de nota.
A série retrata Benjamin como um sujeito superficial, caprichoso e sem conflitos, que pouco interage com os demais. Na vida, ele e Arendt foram amigos, a ponto de ela ser transmissora de suas Teses sobre o conceito de história e sua editora nos Estados Unidos; na série, ele morre muito antes de ela aparecer, e ela nunca chega a mencioná-lo. Apesar da importância da dificuldade toda de obter um visto para Benjamin e de tirá-lo da Europa nos primeiros episódios, a sua morte, que impactou imediatamente e para sempre a vida dos seus amigos, pouco representa na ficção. Por fim, se Benjamin só é reconhecível fisicamente, a Arendt de Transatlântico é estereotipada e fala o que só escreveria anos depois. É como se tudo o que lemos dela já estivesse pronto lá atrás.
A frustração com a personagem me fez assistir de novo Hannah Arendt - ideias que chocaram o mundo, comentado aqui por Richard Bernstein. O filme também põe linhas de textos seus na boca da protagonista, faz com que ela fale como escreve, mas muito menos que a série e em cenas que apresentam o seu processo de pensamento. Compreensivelmente, é uma Arendt mais vivaz, intensa e intransigente quando se trata da sua autonomia intelectual, em meio à polêmica em torno do seu Eichmann. Por mais que a minha lembrança fosse de um filme melhor do que me pareceu agora, ele vale o tempo, e tem as relações deliciosas de Arendt, por exemplo, com a romancista Mary McCarthy e com o seu marido, Heinrich Blücher.
Para saber mais sobre a vida da Arendt, recomendo as biografias Por amor ao mundo, de Elizabeth Young-Bruehl, ironicamente, uma psicoanalista, e Hannah Arendt, de Samantha Rose Hill. Young-Bruehl também falou sobre a banalidade do mal aqui, por ocasião do centenário da pensadora. Já a vida de Hirschman é recontada por Jeremy Adelman em Wordly philosopher: the Odyssey of Albert O. Hirschman. A própria Arendt escreveu, enfim, ensaios com pegada biográfica, inclusive sobre Benjamin, em seu livro Homens em tempos sombrios, que inclui mulheres, apesar do título.
Renata, gostei muito de suas reflexões.
Sobre a questão da "banalidade do mal" sou obrigado a recordar-me da explosão do Jean Amery, o filósofo sobrevivente de Aushwitz : "o mal jamais é banal!" Para ele a "banalidade do mal" pode atenuá-lo. Ele estende a responsabilidade genocida a quase todo o povo alemão.
Outro ponto é a série Transatlântico. A caracterização ridícula do Benjamin foi demais para mim.