Com Denise, com Arendt
Neste post comento como uma peça de Denise Fraga me ajudou a compreender melhor um aspecto do pensamento de Hannah Arendt
Fui ao Tuca, o Teatro da Universidade Católica de São Paulo, ver “Eu de você”, com Denise Fraga dias atrás. A peça proporciona uma experiência de vida em teia a espectadores de uma peça sobre a teia da vida. Emociona e eleva.
Em “Eu de você”, Denise Fraga conta histórias de pessoas comuns: a da secretária executiva mãe de adolescentes, a da professora com um ex-aluno rejeitado, a da mulher negra e pobre que ascendeu socialmente e se encontra numa relação tóxica com um homem branco, a do rapaz gay que foi vítima de abuso e foi rejeitado pela mãe em razão da homossexualidade. Passei dias encantada com a plasticidade e a fina descontração da atriz, que enche o palco, na maior parte do tempo ela e suas sombras, em movimento ou parada, encarnando essas histórias múltiplas.
A peça é uma grande colcha de retalhos biográficos que pessoas de todo o país enviaram para a produção. A costura desses fragmentos, tão diversos uns dos outros, é feita com passagens de Simone de Beauvoir, por exemplo. “Escrevo porque preciso”.
O efeito dessa costura ressignifica a ideia de performance, que se desloca da atuação para o fazer que se realiza com a fala em cena. É uma costura engenhosa. Faz com que os espectadores, enquanto assistem uma peça sobre a teia da vida, tenham a experiência da vida em teia no próprio setting.
Perceber esse potencial do teatro mudou minha compreensão da importância que Arendt lhe confere em sua reflexão sobre a política e a possibilidade da liberdade na sociedade de massa, por exemplo, em A condição humana. Para explicar o que quero dizer, vou dar, no entanto, um passo atrás e associar o teatro com o modo como Arendt pensa o espaço público.
Arendt entende o espaço público como um espaço de aparecimento. Com essa noção se afasta de pensadores que o centram na troca de ideias, opiniões, informações. No espaço público arendtiano, todos somos atores e espectadores ao mesmo tempo, e, se a política se faz nele, ela só pode ser drama, ato em cena.
A metáfora teatral funciona porque, para Arendt, o ator político se define pela ação, que é imprevisível, incontrolável e irreversível. Principalmente, na ação o ator comunica tanto as suas opiniões quanto a si mesmo.
Essa noção de ação, mais fenomenológica, menos racionalista que a prevalente na tradição de pensamento ocidental, dificulta a redução da política a uma questão de meios e fins. Isso não significa que as categorias “meios” e “fins” sejam inúteis para pensar a política na era moderna, mas significa que, para Arendt, elas não dão conta do que a ação tem de espontânea e extraordinária.
Para sustentar a utilidade da metáfora, Arendt recupera dos gregos antigos a distinção entre teatro e escultura. Essa distinção é importante no pensamento arendtiano porque, para sobreviver ao tempo, o teatro depende do relato de quem o assistiu, seja oral, seja escrito.
De um lado, esse relato só tem sentido porque vivemos em rede, isto é, vivemos entre outros, iguais o suficiente para nos entendermos, diferentes o suficiente para precisarmos nos fazer entender. De outro lado, para que que os espectadores de uma peça cheguem a imortalizá-la, ela precisa ser bela. E “Eu de você” é. É sua beleza que compele a contá-la.