Gosto filmes classificados como LGBTQ+. Por mais que a classificação possa ser questionada, a importância dessas peças para a formação da comunidade LGBTQ+ é bem abordada pela literatura e aparece em relatos de pessoas que se identificam com ela. Filmes classificados na categoria, como As horas e Carol, estão entre os meus preferidos para qualquer gênero cinematográfico; com outros inclusos na categoria, como Tomates verdes fritos e The secrets, tenho uma relação afetiva. Close, de Lukas Dhont, acaba de entrar para a minha lista.
Candidato ao Oscar de melhor filme estrangeiro pela Bélgica, Close conta a história da amizade de Leo e Remi em momento crucial. Aos 13 anos, os meninos estão entrando na puberdade e mudando de escola, tudo ao mesmo tempo.
São amigos íntimos. Têm uma intimidade que só a inocência, aquele desconhecimento de que o outro pode ferir de morte, permite ter. Fantasiam juntos, da incursão de invasores ao futuro musical de Remi, que faria sucesso com o seu oboé e seria assistido por Leo. Correm dos campos floridos dos pais de Leo à casa de Remi, onde dormem juntos: tão juntos que sobra espaço na cama. Quando dormem separados, encontram-se numa bifurcação a meio caminho da escola para pedalarem juntos até lá.
Tamanha intimidade transborda da casa para o espaço escolar. Um apoia a cabeça no ombro do outro, o outro deita na barriga do um. Na escola, a falta de distância física entre Leo e Remi adquire outro sentido. “Vocês estão juntos?”, pergunta uma colega certo dia, para o riso malicioso das amigas. “Não quis ser maldosa”, emenda.
O contato físico afetuoso entre duas amigas não teria suscitado a mesma suspeita. Mulheres têm intimidade com o corpo uma da outra e essa intimidade se transmuta em liberdade de tocá-lo de diversas maneiras. O filme parece querer mostrar que, a partir da adolescência, a intimidade corporal entre futuros homens é percebida como inadequada, a menos que haja algum grau de parentesco. Leo e Charlie, seu irmão mais velho, por exemplo, têm contato físico semelhante ao que ele mantinha com Remi, sem problemas.
Essa diferença de percepção remete à relação entre machismo e desejo. Se normalmente se entende que é o masculino e tão-só ele que põe o desejo em circulação, a intimidade física entre as meninas da turma não representa um perigo para a sua heterossexualidade futura, ao passo que entre os meninos ela torna a homossexualidade quase irresistível. No caso de Leo e Remi ela o seria tanto mais porque eles já compartilham inúmeras fantasias, seja uma invasão a ser combatida desde o seu esconderijo, seja a projeção da intimidade presente num futuro comum.
A forma da pergunta que a colega dos dois lhes lança também chama atenção: ela não quer saber se eles são gays, mas, sim, se eles estão juntos. Interroga, portanto, acerca de um estado, não de uma identidade, e fala com naturalidade, embora consciente de que geraria desconforto. A pouca idade da inquisidora sugere que se tornou natural contemplar a possibilidade da não heterossexualidade e, paradoxalmente, é essa naturalidade que cria condições para a pergunta. O problema é ela não tornar a experiência homossexual necessariamente mais confortável.
Leo esclarece que eles eram “amigos, quase irmãos”, mas, na medida em que a sua resposta não afasta o rumor, ele se afasta de Remi. Primeiro se percebe dormindo junto do amigo e põe o edredon no chão. Remi desce, e os esforços de Leo para que ele retorne à cama acabam em uma luta física. Leo não quer aparecer como “estando junto” com Remi e, num esforço por controlar a sua forma de aparição na escola, entra para o time de hockey. Remi tenta acompanhar a mudança. Ele assiste a um treino, Leo se mostra incomodado; ele fala em entrar para o time, Leo se cala.
O descaminho entre os dois se torna irreversível um dia que Leo não espera na bifurcação. “Por que você não me esperou?”, Remi pergunta. Falta a Leo o recurso das palavras, e eles saem no braço. A cena lembra o/a espectador/a que, a partir da adolescência, quando se espera que os meninos comecem a virar homens, as únicas instâncias em que o contato físico é válido são a violência e o esporte. Os meninos, mas não Remi, jogam futebol o tempo todo na escola; os dois protagonistas, com o incômodo de Leo, brigam.
No processo da produção de si como pertinente ao universo masculino, o lirismo e a fantasia dão lugar à brutalidade e ao desejo de conformidade por parte de Leo. Mas só se deseja o que não se tem, e essa falta ou insuficiência é uma marca da experiência da homossexualidade. É bonito como ela aparece no filme em relação com o que transborda na amizade dos dois.
Lindo texto!
Muito bonito, Renata. Não vi o filme, mas a sensibilidade do seu texto me fez ver as imagens e o sofrimento. Tomara que tudo, no fim, tenha saído bem para eles…